Famosos

A democracia reclama um Ministério Público respeitado e não temido

Fama é um deusa mitológica muito singular. Tem muitas bocas, inumeráveis ouvidos, incontáveis línguas, e uma miríade de olhos debaixo das penas das suas asas que lhe permitem voar rapidamente a todos os lugares do cosmo, propagando e amplificando, sem seleção, tudo que chega a seu conhecimento. Virgílio, na Eneida (canto IV, 173ss), a trata como um monstro horrendo que propaga tanto verdades quanto calúnias, sendo a mais veloz das calamidades.

Diz o poeta que “Fama, um mal diante do qual não há nada mais veloz:/tem muita rapidez e adquire forças à medida que anda”. Fama mora em um palácio de bronze, no centro do mundo, de onde suas excessivas bocas reverberam e amplificam tudo o que ouve, até mesmo sussurros e inverdades. Fama pisa o chão, mas anda com a cabeça nas nuvens. Ovídio (Metamorfosis 9, 138) diz que Fama “se compraz em adicionar falsidades às verdades/ e, de quase nada, cresce através de suas mentiras”.

Já Veritas é a deusa romana da verdade. Veritas é filha de Saturno (Cronos para os gregos), que governa o tempo. O tempo da verdade, consequentemente, não é o tempo da fama. Aletheia, figura mitológica grega da verdade, se opõe a Dolo (trapaça, ardil, a astúcia, as malícias, as artimanhas e as más ações); Apate (engano, o dolo e a fraude.) e Pseudeia (mentira, falsidade), entre outros males que escaparam da Caixa de Pandora — onde só a esperança permaneceu aprisionada. A Iustitia — outra divindade romana — é feita com a verdade, logo seu tempo também é outro.

Diferentemente da Fama e seus infinitos olhos, Iustitia é representada com os olhos vendados, justamente para ser imparcial e prudente. Quando antes do descobrimento do Brasil, Boticelli retrata o julgamento de Apeles, vê-se na pintura um magistrado aconselhado pela suspeita e a ignorância que lhe sussurram ao ouvido, enquanto distante está a verdade, separada dele pela inveja, a calúnia, a conspiração e a fraude, todos encarnados em personagens pintados na tela. Eis que a civilização nos deu o Estado Democrático de Direito, o devido processo legal e o princípio acusatório para que princípios, regras, formas e segregações de funções protegessem a todos, indistintamente, dos instintos humanos menos evoluídos, sobretudo para julgamento de condutas, mais que de pessoas.

Outro construído humano — e portanto não divino — é a maravilha da democracia e todos seus corolários, a nos pedirem muitas virtudes, nem sempre abundantes. Na escassez desses e dessas, naturalizamos polarizações, aversão em lugar de diálogo, certezas indiciárias, pós-verdades, investigações midiatizadas, criminalização da política e julgamentos expressos por redes sociais.

O poeta baiano Tom Zé, após sofrer maciço cancelamento nas redes sociais, respondeu com sua arte na canção Tribunal do Feicibuque. Aos magistrados, por seu turno, quando incompreendidos no seu mister — mas constitucionalmente garantidos para serem independentes e fazerem apenas aquilo que a ordem jurídica e suas consciências lhes impõem — não resta outra possibilidade que não seja manterem seus juramentos e permanecerem fora do jogo da política a que se pretende, das mais variadas formas, levá-los.

Incompreendidos, quando não também atacados, confiam ao tempo, à virtude, à verdade, e a história a evidenciação da serenidade que guardam, mesmo em ambientes conflagrados e, por conseguinte, incompreensivos ou irascíveis. É notório que o país já experimentou situações de midiatização da persecução penal cujos efeitos perversos atingiram profundamente nossa sociedade política, nossa economia, nossa história e muitas reputações. Aqui o tempo vem trazendo lições que não podem deixar de ser aprendidas.

O Ministério Público tem redobrado respeito às tarefas e concepções de todos os atores em uma democracia, sobretudo valorizando os controles políticos sobre a política, culminantes com o voto popular. O fato de muitos atores não corresponderem ao Ministério Público com reciprocidade, contudo, não deve implicar retrocesso na atuação ministerial , ainda que isso possa ser desejável aos que apreciam a instabilidade e o descrétido do Estado e de seus agentes.

O presidencialismo é um regime de estabilidade para os poderes legislativo e executivo, diferentemente do sistema parlamentarista onde governos podem ser dissolvidos a qualquer tempo por voto de desconfiança, assim como pode haver antecipação de eleições legislativas, como se acontece em sólidas democracias contemporâneas.

Malgrado o fracasso do parlamentarismo no plebiscito, anomalamente se tornaram usuais pretensões de se abreviarem mandatos no Brasil, quer pela via do impeachment quer pela via criminal. À banalização dessa pretensão corresponde ao Ministério Público uma adesão ortodoxa a todos os cânones do Direito Penal, cujo afrouxamento em desfavor de quem quer que seja, ou manejo presidido por imperativos políticos, é um risco a todo o processo civilizatório.

O direito de petição e representação contra autoridades com foro no Supremo Tribunal Federal tem sido exercido com abundância e redundância — quiçá excesso — ao Ministério Público Federal, tanto no presente quanto no passado recentíssimo.

Desde 1º de janeiro último, após análise técnica, já foram arquivadas mais de uma centena de representações contra o atual presidente da República, seus familiares e ministros de Estado da presente gestão federal. No governo anterior, da mesma forma, não faltou exame acurado, técnico e independente, sendo o rigor do Ministério Público Federal imune a pressões políticas ou midiáticas. A democracia reclama um Ministério Público respeitado e não temido.

Severo, mas não empolgado para disputas politicas. Firme, mas não intolerante. Dialógico e não sectário. Pensando bem, com já disse Ovídio (Fastos, IV, 311), “a consciência tranquila ri-se das mentiras da fama”.

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